Physalia



1.       “Portuguese-man-of-war”

Hesita primeiro, como distraído, e entra depois, dir-se-ia casualmente, no interior da loja.


A montra detivera-o. À sua volta, milhares de passos tinham tido de contornar o obstáculo que ele criara no passeio, demasiado estreito. Quase poderia ter ficado ali indefinidamente. Agradara-lhe a morrinha húmida do princípio da noite. Qual desconforto agradável de mudança de estação ou, quase certa, reminiscência da memória de um tempo passado. A humidade que respirara e sentira tão próxima, como colada a si, animara fisicamente o ambiente, parecendo-lhe estranho o fixo itinerário, na noite, das pessoas que circulam. O seu olhar estacionara na barreira do vidro que, ao mesmo tempo, o atravessa e o projeta num outro final de tarde, quando pressentira uma transformação total no mundo (algo intraduzível, mas que seguramente se apresentava como prenúncio do tempo futuro) – um ambiente de força dilacerante, que vinha com a estação do outono e, não sabia porquê, o deixara vagamente fascinado, possuído de um sortilégio. O que o surpreendera, de facto, nesse momento antigo, fora a cor fantástica do céu, um rosa oceânico, brilhante, cinza, como se as nuvens vogassem muito baixas, e todo um fulgor submerso se desprendesse no ar. E tudo isso, ou nada disso, talvez, permanecera, imutável nos seus sentidos, como algo que ficara – nem bom, nem mau, nem verdadeiramente agradável, nem tragicamente repugnante – lembrança imperscrutável.

Os focos automatizados da iluminação pública, que já tinha sido acionada, pareciam-lhe concentrados (tal como ele próprio) num outro rosa perturbador, o de uma espécie de alga gigante, em repouso na superfície de um aquário; e estes focos de luz noturna agiam como forças de energia que o alimentassem. O aquário era de proporções enormes e continha, flutuando na água meio amarelada, a alga de tom rosa, de onde se desprendem fios, filamentos, de azul cobalto brilhante. À esquerda do aquário, onde boiava a alga, estavam dispostos, em fila ordenada, três vasos de plástico, cheios de terra até ao cimo, de onde emergiam canas, estacas de suporte sem plantas. Em redor, um pouco por toda a parte, como ao acaso, o mais variado tipo de objetos práticos: revistas; esferográficas; copos de vidro; carteiras de fósforos; livros; um espelho com moldura fina de plástico branco; e uma gerigonça artesanal, constituída por pilhas, pequenas lâmpadas de formato redondo e fios retorcidos e embaraçados uns nos outros, tudo isto seguro por uma tira de fita adesiva castanha. Por detrás, qual remate final, de caos ou de falta de gosto, um cortinado de chita – preso em cima por ilhoses redondas acobreadas – pendia desconcertado.


2.       “Velella”

Ao abrir a porta (casualmente, hesitante e distraído, entrara no interior da loja) o som de um besouro elétrico fá-lo estremecer e olha à sua volta, expectante, como intruso. Afinal, contudo, nada na loja, aparentemente sem ninguém, se surpreendia. Podia ter recuado e saído, mas o som radiofónico de uma telefonia tranquilizava o seu nervosismo tímido e criava um agradável ambiente familiar, instrumentado pela voz rouca e grave (ligeiramente gaga) do locutor de rádio. Por isso, solta a maçaneta da porta e já nem dá conta, sequer, do ruído da lingueta metálica do fecho que encaixa, suavemente refreada pela mola, no ímpeto final.

O espaço no interior é exíguo. As dimensões não ultrapassam um quarto de apartamento. Do degrau, onde se encontra, junto à porta, observa à sua volta, durante uma ligeira fração de segundo, enquanto prossegue, descendo sobre o soalho, assentes os pés no chão de tábuas pregadas, que rangem sempre que com o seu peso nelas se sustenta. As paredes estão forradas de estantes de madeira muito escura, com retorcidos complicados, nas partes laterais e na base. Bem à sua frente (espaço central da loja) uma mesa enorme enche tudo e quase não encontra espaço livre de circulação. A fraca iluminação do interior é feita por uma lâmpada fluorescente, que se percebe já gasta pelo ruído intermitente que vai fazendo a intervalos irregulares; e, nesta imagem que recolhe, tudo lhe parece demasiado atravancado de móveis, apenas animado pela voz irónica e galhofeira do locutor na rádio. Por detrás de si, a montra enorme, vista agora do interior da loja, parece ser o único local de verdadeiro interesse, fora dos limites da sala, absurdamente pequena, onde paira um cheiro intenso a pó, a humidade, papel e madeira.

Foca agora o olhar num movimento errático de pormenor e, instintivamente, agarra um livro. O contacto das suas mãos com a capa de pele velha e estragada pelos anos e pelo uso é-lhe desagradável. Pequenos pedaços muito finos da lombarda colaram-se-lhe à pele e nem o movimento de massajar com os dedos aceleradamente, contra a palma da mão, os consegue fazer soltar por completo. O papel das páginas do livro parecia-lhe, no contacto físico, assemelhar-se a tiras cartonadas, húmidas e frias, esfarinhadas. Voltou a colocar o livro no amontoado, reparando brevemente no título dourado “Breve História Natural”. E logo, o seu olhar, dirigido pelos doirados faiscantes de todos os títulos dos livros amontoados sobre a mesa e nas prateleiras, lhe revelou que a globalidade das obras abrangia variados subdomínios, ou subtemas, das Ciências da Natureza. Pela primeira vez se deixa espantar: curioso, um alfarrabista especializado em temas das ciências naturais.

Desconcertado com os livros, com os quais não lhe agradava o contacto físico, toma então uma revista e fica-se a folheá-la. Era uma edição inglesa, de finais do século XIX, chamada Science, e que reproduzia, nas páginas centrais, algumas litografias de um biólogo naturalista inglês, Haeckel, tiradas de uma monografia de 1888. E agora, sim, achava ainda mais espantoso: as imagens, que representavam criaturas transparentes e pareciam flores ou folhas imaginárias, eram extraordinariamente semelhantes à alga no aquário da montra!

Os faróis, na passagem, das luzes dos carros, a conversa vaga e por vezes monótona do locutor da rádio, o som muito abafado do trânsito intenso do fim de tarde, o ruído intermitente da lâmpada gasta do teto: tudo isto lhe pareciam projeções fantásticas da sua própria imaginação, num espaço de quase silêncio e sombra.

Levado por um impulso brusco, aproximou-se da montra. Conservava a revista consigo, e observava, atentamente, ora a alga ora as imagens, como se toda a sua perturbação irracional não fosse mais do que um acesso estúpido e de resposta simples.

- É uma fisália… - ouviu afirmar atrás de si.

Olhou sem surpresa, mas curioso, para o homem, que surgira sem que pudesse saber de onde. Reparou que ele era muito baixo, de cabelo todo branco, com uma estatura de adolescente pouco desenvolvido, e um pequeno bigode acinzentado. O olhar brilhante, como só o encontro do pensamento com a imaginação pode provocar, parecia-lhe trocista e eletrizante. Mas, desabsorto de novo, verificou que a afirmação feita pelo homem, em voz arrastada, mas clara, lhe era completamente estranha.

- Desculpe, mas não percebi…

- Uma fisália. – Repetiu o outro. – Da família dos sifonóforos. São interessantes, sem dúvida,  os sifonóforos. Criaturas espantosas. Na verdade, fascinantes.

- Sim, certamente… É biólogo… talvez, naturalista?

- Não, nada disso… olhe.

E estendeu-lhe um Almanaque já muito antigo, que incluía um título de um estudo científico sobre sifonóforos.

- Como vê, se calhar, dececiono-o, não? Cultura de Almanaque. Há cinquenta anos que o faço – compro, leio e coleciono tudo sobre sifonóforos.

- Bem, então é um colecionador.

- Não somos todos?

- Eu não! Deito tudo fora!

- Coleciona ideias, pensamentos, impressões, medos, ditos, angústias? Isso… eu deito fora! – e pigarreou, aclarando a voz cava e segura. – Guardar mesmo, só os livros sobre sifonóforos. O resto… lixo!

Confuso? Dececionado? Interroga-se a si mesmo e atreve-se a questionar:
- Vai desculpar-me, decerto, Mas ainda não entendi… quer significar o senhor que esta alga inerte, sem forma, é uma criatura, um ser vivo? Um sinóforo, disse…

- Desculpe, um sifonóforo…

- Certo, seja como disse…

- Perdão. Desculpe interrompe-lo, mas, entenda, é importante a articulação das palavras. Mudam facilmente de significado se não estamos atentos. Uma vez, durante anos, com um grupo de amigos, inventámos uma tertúlia: uma vez por semana, num serão à noite, reuníamo-nos e desconstruíamos a rede lexical das palavras. Depois aproveitávamos umas tantas e imprimíamos panfletos (atividade que fazíamos numa antiga tipografia, que trabalhava ainda com um sistema de tipos móveis; cada palavra construída letra a letra, prensada e encaixada numa solidez atroz). Depois, ao outro dia, era o divertimento total: sabíamos os fiscais do regime enredados na descodificação de folhetos subversivos, criptograficamente cifrados, julgavam eles. Chegaram a mandar vir, do estrangeiro, um dito especialista em códigos. Esse terá ocupado o seu tempo, e ganho o seu dinheiro, a pensar o impensável acerca dos nossos textos, porque nós nada pensáramos. Tinhamo-nos limitado a refundir as palavras. Era muito novo, então… foi aí que aprendi a importância que elas têm. Devemos estar atentos às transgressões. Se quisermos transgredir, devemos fazê-lo com conhecimento, com sabedoria… a bela “sagesse” dos franceses.

Não soube que responder. Subitamente, na sala, ecoou o sinal horário das vinte horas, transmitido pela estação de rádio: agudo, digitalizado, desumanizante. E, numa frequência ainda mais elevada, o ruído estridente dum spot publicitário impôs uma interrupção à conversa. A voz suave, harmoniosa e divertida, gracilmente gaga do locutor anterior desaparecera. Em vez dela, tinha sido posta no ar uma transmissão em direto da inauguração de uma exposição artística de Pablo Milaneto. As entrevistas feitas aos críticos de arte presentes, que estavam a ser difundidas, transportavam para o interior da loja o ruído angustiante, e sem sentido, de uma multidão de vozes, que era como um roncar disforme, mergulhado em ondas e desfeito; sobreposto a ele, as opiniões individualizadas dos especialistas.

«- Espantosas… veja a recriação das figuras femininas!»

«- De facto… É espantoso.»

«- Brilhante, garanto-lhe. Os cabelos são em forma de tentáculos e escondem-lhe todo o rosto. Perdeu-se completamente a forma humana e os seres que a envolvem parecem ser projeções de si própria. Como clones. Gosto de usar esta palavra. Moderna, não? A pintura portuguesa está repleta de clones. Não concorda?»

«- Mas o Pablo não. É extraordinária a forma como nesta exposição regressa aos temas da mitologia clássica, da antiguidade grega e latina, sem perder a força e a energia próprias da sua pintura.»

«- Alterou ligeiramente as proporções e as cores…»

«- Oh, ligeiramente. Muito pouco. De resto era necessário. Deve reparar nos títulos dos quadros: ninfa, medusa, coralina…»

«- Alguns estranhamente têm formas alucinadas de flores.»

- Sifonóforos. – Afirmou o velho, elevando apenas um pouco o tom de voz, e que até ao momento permanecera silencioso. – São sifonóforos, pode crer: de resto, são parentes dos corais e das medusas e, quem sabe, se não serão das mulheres?

- Sim, talvez…

- Tome. – Disse-lhe o homem estendendo-lhe o Almanaque. – Leia. Compreenda. É um trabalho de uma vida. Ou melhor, é o trabalho da vida. Não quer experimentar? Receia? O quê? Ter toda a vida de subir e descer esta mesma rua íngreme? Sem mais nada? E o que é que há mais, para além do empedrado deste passeio e a montra desta loja? Sim, a montra… A verdade e as dúvidas simultaneamente contidas no mesmo espaço, na mesma matéria.  

Dito isto, afastou-se e saiu da loja. Através do vidro da montra, o rapaz acompanhou o trajeto do velho, que atravessava a rua, por entre o trânsito denso, quase parado, e desaparecia no cimo. Enquanto o observava em movimento, ficara com a impressão de que nunca mais o veria: sim, de facto, era como um registo de uma sensação segura e espantosamente real.

Não ficou mais tempo ali. Desde que o homem saíra que tudo parecera ficar ainda mais densamente incompreensível. Saiu, transportando consigo o Almanaque.

Num último olhar de relance para o aquário já não sabia que forma vislumbrava: uma alga, seria?, num mar calmo e tranquilo, quase inerte? Uma figura humana… uma alucinação de flor? Ou, tão simples, um universo contido numa sopa líquida, fétida e amarelada?


3.       “Caravella”
Da capa do Almanaque, traduzira do inglês o título “Mundos paradoxais”.

Afinal o paradoxo era uma dúvida, se calhar, até, um desconhecimento científico. As fisálias seriam um organismo ou uma colónia? Ridículo, pareceu-lhe. Interessou-o mais, na verdade, a ideia de superorganismo, indivíduos interligados. Perdida a individualidade, especializados numa única tarefa, afinal órgãos de uma entidade mais ampla. Mas, isso, sim, era realmente interessante, agindo como um todo.

A natureza comediante de si mesma, era algo divinamente curioso – quase dantesco. Sim, sobretudo se as fisálias desconhecessem esta dúvida. Se calhar era a dúvida do próprio universo. Tudo remetido apenas a uma questão de escala. Até mesmo as próprias dúvidas!

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- Boa tarde, permita que me apresente – desenvolvera de facto uma postura e um cumprimento mais cordiais do que o velho – chamo-me Pablo Milaneto.

- Boa tarde. – Responde ligeiramente admirado o outro indivíduo. – Ali fora, no aquário, aquilo… é uma alga gigante?

- Não, de modo algum. É uma fisália, um sifonóforo. Parente dos corais e das medusas.

- Desculpe, não percebo…

- É na verdade muito simples: forma uma solução de continuidade, como no interior de um corpo, sendo uma colónia. Paradoxalmente, contudo, essa é a aporia e a dúvida.





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