À minha
frente, o televisor transporta a realidade, confirma a minha existência
concreta, temporal, e anula os medos submersos. Estabilizo o olhar no espaço do
écran e afiro a atualidade, que me faz sentir numa imensa cadeia global, onde
as distâncias e os acontecimentos são transpuníveis por correntes elétricas e
cabos invisíveis, mas que estão lá algures e ligam os continentes. Ah, sim! E
os satélites… à deriva, como mortos, suspensos no espaço. Cadáveres abandonados,
que ninguém mais quer e que atingiram pontos inacessíveis, que só voando se
atingem. Por isso me interrogo: “- De entre nós, quem pode na realidade voar?”
Sentado no
sofá, no canto oposto da sala, está um velho amigo. É um verdadeiro corsário do
século XVII. Rosto oval, coberto por uma barba castanha escura, densa, e
cabelos quase louros, compridos. É uma figura humana frágil, quase débil, e,
contudo, vê-lo-íamos, sem dificuldade, empunhar uma espada (de corsário) e
combater na amurada de um navio, num pátio de casas, numa esquina entre duas
ruas. Encontramo-nos raramente. De vez em quando, aparece, entra, quase sempre
antes de eu chegar, e ocupa o lugar, do costume, no sofá, ao fundo da sala,
muito próximo da janela. Ali, parece ficar à espera: umas vezes, parado, olhar
estático, sem se mexer; outras, modelando formas geométricas em pequenas folhas
de papel. Às vezes fica horas sem dizer uma palavra e eu limito-me a acompanhar
as imagens no televisor. Aí tudo parece real. Focam-se alguns momentos soltos
e, como recortadas, as formas mexem-se, executam movimentos e falam; e voltam
atrás, repetindo tudo, porque se quer.
Hoje, porém,
não será assim. Eis que se levanta, e o seu corpo balança (como se estivesse a
bordo de um navio, a navegar), fazendo agitar as franjas compridas, que se
prendem, lateralmente, às botas castanhas de cano alto. Sorri, enquanto se
aproxima.
- Tinha
saudades de falar contigo.
Eu sorrio. E
endireito-me no assento, libertando o espaço para ele se sentar. O corsário
toma o lugar ao meu lado e senta-se. O tronco ligeiramente encurvado, os braços
dobrados assentes sobre as pernas e as mãos unidas, mesmo por sobre os joelhos.
O cabelo louro, solto e comprido, afunila-lhe o rosto e parece quase uma figura
imberbe, como perdida. Fica assim debruçado a conversar comigo.
- Queria
ver-te de novo, antes de regressar. Sabes, estou em dois tempos deferentes.
Acreditas?
- Acredito. –
Respondo com seriedade, como faço sempre, parecendo-me indiferente entender se
é verdade ou não.
- Queria falar
contigo… Sabes? Acho-te fascinante… Os teus lábios, o teu olhar, a tua facis…
Sem dúvida é o
corsário quem fala – o corsário de barba negra – e que se dirige à sua dama do
século XVII. Como o escutaria ela, interrogo-me. Em silêncio, sorrindo, tal
como eu, no século XX? Ou, não ousaria sequer sorrir, não falaria tão pouco,
escondida em timidez? Olhá-lo-ia com desdém? Difícil compreender a dama do
século XVII… Talvez se limitasse a escarnecer dele. Eu não o farei. Mas algo me
intimida e, como todas as outras vezes, há em mim o desejo de fugir. Atento,
ele parece ter percebido.
- Não te vás
embora. Gosto de falar contigo, sabes?
A dama não
consegue resistir ao pedido… eu também não.
- Sabes, tenho
em casa uma espada. A lâmina é de aço de Córdova. Comprei-a na última vez que
fui a Espanha… e, sabes, foi engraçado, encontrei uma rapariga, que me disse
que tinha estado comigo, dois dias antes, no país Basco… que eu era esse… -
sorri com um olhar provocador e continua a falar - … talvez fosse mesmo eu, mas
não me lembro de ter lá estado. Conheces o país Basco?
- Não. Mas
acho os bascos espantosos… o mistério da língua… Acho mesmo que só me poderia
apaixonar, de verdade, por um basco… nunca se sabe se não estaremos perante um
revolucionário… um idealista, que defende com paixão e verdade as…
- Também tenho
uma pistola. – Diz subitamente, e interrompendo-me. – É de carregar pelo cano…
muito antiga e de punho trabalhado.
- Uma espada…
uma pistola… Tudo isso para quê?
- E tenho
também uma navalha de ponta e mola.
Quererá
surpreender-me?
- Nunca usei
nenhuma dessas armas, a sério, mesmo! Sabes… o que eu gosto mesmo é de jogar
naquelas máquinas eletrónicas…
- Com jogos de
guerra?
- Claro… olha,
é precisa muita destreza e domínio e energia, claro. Qualquer distração ou erro podem ser
fatais, entendes?
Todas as
características de um corsário combatente. Imagino que é o que ele quer que eu
pense.
- Já alguma
vez jogaste nessas máquinas?
- Não.
Gasta-se muito dinheiro. É uma palermice.
Endireita-se e
aproxima-se mais de mim. Desde o início da conversa que não se movera da mesma
posição. Tira um papel dobrado do bolso interior do colete largo de camurça.
- É um mapa
mundi. Queres ver?
- Sim. Mostra.
- Encontrei
este mapa aqui na sala. É teu?
- Não. Não
faço a menor ideia de quem seja!
- Queres ver,
está tudo errado…
Parece uma
criança, ansiosa, o seu olhar ganha algum brilho e movimento. Todo ele se
agita, para me explicar que as dimensões dos continentes e dos mares estão
erradas. Poderia facilmente pegar num Atlas e mostrar-lhe a verdadeira dimensão
do mundo, mas acho desnecessário… Ele, corsário, que parece saber de cor os
contornos dos terrenos e dos países, contestaria decerto.
- Sabes o que
é um conta-fios?
- Não faço a
menor ideia… serve para contar fios… - arrisco na brincadeira e porque estou
cansada de o ouvir a argumentar sobre as formas dos continentes e dos mares.
Com
satisfação, explica que é um objeto indispensável para desenhar os mapas, que
exigem um trabalho de construção meticuloso, milimétrico.
- Já viste
desenhar um selo? Sabias que não são feitos à escala? São mesmo assim daquele
tamanho. Há selos espantosos. Sabes que coleciono selos de todas as partes do
mundo? Tenho alguns fantásticos dos Estados Unidos da América.
- O admirável
mundo novo? – cito em jeito de troça.
Olha-me
indiferente, não percebeu a citação nem o sentido. Já o conheço e sei que vai
de imediato mudar de assunto… são águas ou terrenos que não domina, prudente,
afasta-se.
Narra-me a sua
última aventura, mas que pode afinal ter sido apenas a primeira e a única,
aquela que ele sempre repete, quando quer manter a minha atenção. Fora atacado
em Lisboa. Roubaram-lhe o casaco de cabedal (caro, que comprou com um cartão de
crédito) e todos os documentos. Ficou sem identidade. Dessa aventura recorda fragmentos
de cenas. Risos selvagens e palavrões… cavalos… ou motas… e uma poça de sangue.
- Quando vi a
poça de sangue desatei a fugir… quase que caí pelas escadas abaixo… Sabes, a
poça de sangue não sai da minha cabeça. Aqueles tipos eram maus. Tinham navalhas
e estavam bêbados e drogados. Não sei quem é que morreu… mas eles apanharam um
tipo qualquer… até podia ter sido eu… entendes?
Aceno com a
cabeça afirmativamente, ao mesmo tempo que o olho com atenção. Esta abentura
parece já ter-lhe acontecido vezes sem fim, e sempre que a recorda,
estampa-se-lhe no olhar o medo aterrador que terá sentido nessa noite…
impotência, fragilidade, submissão… como se em qualquer dos mundos, ele sempre
tivesse sido perseguido. Ao meu lado, no entanto, parece calmo, talvez porque,
como ele afirma, eu lhe faço lembrar a dama (a tal das faces esbeltas e do
sorriso cândido).
- Sabes? É só
no futuro que as pessoas se encontram.
- Bom… já é
uma vantagem…
- Porquê?
- Há pessoas
que, no presente, ninguém gostaria de ver…
Não dá qualquer
importância ao que eu digo. Sabe que eu estou a brincar e fica desconcertado.
- No futuro
podemos transformar a realidade. Estamos livres, soltos, podemos fazer o que
quisermos… Percebes?
- Menos mexer
no mecanismo do tempo… - arrisco, com um sorriso, que ele não entende.
- Bom, ele só
existe para quem acredita.
- Eu acredito.
Envelheço…
Olha-me
surpreso e agora é ele que sorri trocista e sussurra…
- Ainda ontem…
tinhas esse mesmo sorriso… e a tua face branca, sem rugas, lembrava o sopro do
vento. Dei-te uma flor e olhaste-me docemente…
- Sim. Ontem.
- Bom, mas
ontem, foi há muito tempo!
Perco
propositadamente a noção do tempo que flui e começo a sentir um entorpecimento
geral, um cansaço agradável, que, fatalmente, irá conduzir ao sono. A voz do
corsário cada vez mais distante, penso. Domino inconscientemente a vontade
física de dormir, concentrando-me no televisor, e imagino uma fuga de luz, de
sons e de contrastes, capazes de descreverem um círculo (semicírculo fechado
num punho). A luz foge e o écran fica impenetrável na distância das imagens.
Acordo, talvez mais tarde, e sinto o corpo dormente. A luz do televisor dirige
o meu olhar para o écran e vejo que constrói sozinho chuvas de pontos brancos e
negros, que dançam num movimento elétrico, mecânico, descrevendo marés vivas,
limitadas no espaço. A cor cinzenta, metálica e brilhante, capta toda a minha
atenção e, aos poucos, desprende-me da realidade cromática que me cerca, como
se em toda a sala não existissem senão movimentos tumultuosos de pontos
cinzentos dispersos e mecanicamente ativos, acompanhados de um ruído eletrónico
e hipnotizante que me povoa o cérebro. Nesse momento esqueço po completo o
corsário, a dama e as aventuras. Estou presa, sei, no mecanismo do tempo… Sinto
frio, perdida, de súbito, na sombra do infinito.
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