Nota Inicial

Nuvens de Magalhães... uma galáxia dual.

Dois textos escritos em meados da década de noventa. Aqui os apresento sem modificações.

E, passado todo este tempo, e por mais que naveguemos, o infinito nos transcende...





Physalia



1.       “Portuguese-man-of-war”

Hesita primeiro, como distraído, e entra depois, dir-se-ia casualmente, no interior da loja.


A montra detivera-o. À sua volta, milhares de passos tinham tido de contornar o obstáculo que ele criara no passeio, demasiado estreito. Quase poderia ter ficado ali indefinidamente. Agradara-lhe a morrinha húmida do princípio da noite. Qual desconforto agradável de mudança de estação ou, quase certa, reminiscência da memória de um tempo passado. A humidade que respirara e sentira tão próxima, como colada a si, animara fisicamente o ambiente, parecendo-lhe estranho o fixo itinerário, na noite, das pessoas que circulam. O seu olhar estacionara na barreira do vidro que, ao mesmo tempo, o atravessa e o projeta num outro final de tarde, quando pressentira uma transformação total no mundo (algo intraduzível, mas que seguramente se apresentava como prenúncio do tempo futuro) – um ambiente de força dilacerante, que vinha com a estação do outono e, não sabia porquê, o deixara vagamente fascinado, possuído de um sortilégio. O que o surpreendera, de facto, nesse momento antigo, fora a cor fantástica do céu, um rosa oceânico, brilhante, cinza, como se as nuvens vogassem muito baixas, e todo um fulgor submerso se desprendesse no ar. E tudo isso, ou nada disso, talvez, permanecera, imutável nos seus sentidos, como algo que ficara – nem bom, nem mau, nem verdadeiramente agradável, nem tragicamente repugnante – lembrança imperscrutável.

Os focos automatizados da iluminação pública, que já tinha sido acionada, pareciam-lhe concentrados (tal como ele próprio) num outro rosa perturbador, o de uma espécie de alga gigante, em repouso na superfície de um aquário; e estes focos de luz noturna agiam como forças de energia que o alimentassem. O aquário era de proporções enormes e continha, flutuando na água meio amarelada, a alga de tom rosa, de onde se desprendem fios, filamentos, de azul cobalto brilhante. À esquerda do aquário, onde boiava a alga, estavam dispostos, em fila ordenada, três vasos de plástico, cheios de terra até ao cimo, de onde emergiam canas, estacas de suporte sem plantas. Em redor, um pouco por toda a parte, como ao acaso, o mais variado tipo de objetos práticos: revistas; esferográficas; copos de vidro; carteiras de fósforos; livros; um espelho com moldura fina de plástico branco; e uma gerigonça artesanal, constituída por pilhas, pequenas lâmpadas de formato redondo e fios retorcidos e embaraçados uns nos outros, tudo isto seguro por uma tira de fita adesiva castanha. Por detrás, qual remate final, de caos ou de falta de gosto, um cortinado de chita – preso em cima por ilhoses redondas acobreadas – pendia desconcertado.


2.       “Velella”

Ao abrir a porta (casualmente, hesitante e distraído, entrara no interior da loja) o som de um besouro elétrico fá-lo estremecer e olha à sua volta, expectante, como intruso. Afinal, contudo, nada na loja, aparentemente sem ninguém, se surpreendia. Podia ter recuado e saído, mas o som radiofónico de uma telefonia tranquilizava o seu nervosismo tímido e criava um agradável ambiente familiar, instrumentado pela voz rouca e grave (ligeiramente gaga) do locutor de rádio. Por isso, solta a maçaneta da porta e já nem dá conta, sequer, do ruído da lingueta metálica do fecho que encaixa, suavemente refreada pela mola, no ímpeto final.

O espaço no interior é exíguo. As dimensões não ultrapassam um quarto de apartamento. Do degrau, onde se encontra, junto à porta, observa à sua volta, durante uma ligeira fração de segundo, enquanto prossegue, descendo sobre o soalho, assentes os pés no chão de tábuas pregadas, que rangem sempre que com o seu peso nelas se sustenta. As paredes estão forradas de estantes de madeira muito escura, com retorcidos complicados, nas partes laterais e na base. Bem à sua frente (espaço central da loja) uma mesa enorme enche tudo e quase não encontra espaço livre de circulação. A fraca iluminação do interior é feita por uma lâmpada fluorescente, que se percebe já gasta pelo ruído intermitente que vai fazendo a intervalos irregulares; e, nesta imagem que recolhe, tudo lhe parece demasiado atravancado de móveis, apenas animado pela voz irónica e galhofeira do locutor na rádio. Por detrás de si, a montra enorme, vista agora do interior da loja, parece ser o único local de verdadeiro interesse, fora dos limites da sala, absurdamente pequena, onde paira um cheiro intenso a pó, a humidade, papel e madeira.

Foca agora o olhar num movimento errático de pormenor e, instintivamente, agarra um livro. O contacto das suas mãos com a capa de pele velha e estragada pelos anos e pelo uso é-lhe desagradável. Pequenos pedaços muito finos da lombarda colaram-se-lhe à pele e nem o movimento de massajar com os dedos aceleradamente, contra a palma da mão, os consegue fazer soltar por completo. O papel das páginas do livro parecia-lhe, no contacto físico, assemelhar-se a tiras cartonadas, húmidas e frias, esfarinhadas. Voltou a colocar o livro no amontoado, reparando brevemente no título dourado “Breve História Natural”. E logo, o seu olhar, dirigido pelos doirados faiscantes de todos os títulos dos livros amontoados sobre a mesa e nas prateleiras, lhe revelou que a globalidade das obras abrangia variados subdomínios, ou subtemas, das Ciências da Natureza. Pela primeira vez se deixa espantar: curioso, um alfarrabista especializado em temas das ciências naturais.

Desconcertado com os livros, com os quais não lhe agradava o contacto físico, toma então uma revista e fica-se a folheá-la. Era uma edição inglesa, de finais do século XIX, chamada Science, e que reproduzia, nas páginas centrais, algumas litografias de um biólogo naturalista inglês, Haeckel, tiradas de uma monografia de 1888. E agora, sim, achava ainda mais espantoso: as imagens, que representavam criaturas transparentes e pareciam flores ou folhas imaginárias, eram extraordinariamente semelhantes à alga no aquário da montra!

Os faróis, na passagem, das luzes dos carros, a conversa vaga e por vezes monótona do locutor da rádio, o som muito abafado do trânsito intenso do fim de tarde, o ruído intermitente da lâmpada gasta do teto: tudo isto lhe pareciam projeções fantásticas da sua própria imaginação, num espaço de quase silêncio e sombra.

Levado por um impulso brusco, aproximou-se da montra. Conservava a revista consigo, e observava, atentamente, ora a alga ora as imagens, como se toda a sua perturbação irracional não fosse mais do que um acesso estúpido e de resposta simples.

- É uma fisália… - ouviu afirmar atrás de si.

Olhou sem surpresa, mas curioso, para o homem, que surgira sem que pudesse saber de onde. Reparou que ele era muito baixo, de cabelo todo branco, com uma estatura de adolescente pouco desenvolvido, e um pequeno bigode acinzentado. O olhar brilhante, como só o encontro do pensamento com a imaginação pode provocar, parecia-lhe trocista e eletrizante. Mas, desabsorto de novo, verificou que a afirmação feita pelo homem, em voz arrastada, mas clara, lhe era completamente estranha.

- Desculpe, mas não percebi…

- Uma fisália. – Repetiu o outro. – Da família dos sifonóforos. São interessantes, sem dúvida,  os sifonóforos. Criaturas espantosas. Na verdade, fascinantes.

- Sim, certamente… É biólogo… talvez, naturalista?

- Não, nada disso… olhe.

E estendeu-lhe um Almanaque já muito antigo, que incluía um título de um estudo científico sobre sifonóforos.

- Como vê, se calhar, dececiono-o, não? Cultura de Almanaque. Há cinquenta anos que o faço – compro, leio e coleciono tudo sobre sifonóforos.

- Bem, então é um colecionador.

- Não somos todos?

- Eu não! Deito tudo fora!

- Coleciona ideias, pensamentos, impressões, medos, ditos, angústias? Isso… eu deito fora! – e pigarreou, aclarando a voz cava e segura. – Guardar mesmo, só os livros sobre sifonóforos. O resto… lixo!

Confuso? Dececionado? Interroga-se a si mesmo e atreve-se a questionar:
- Vai desculpar-me, decerto, Mas ainda não entendi… quer significar o senhor que esta alga inerte, sem forma, é uma criatura, um ser vivo? Um sinóforo, disse…

- Desculpe, um sifonóforo…

- Certo, seja como disse…

- Perdão. Desculpe interrompe-lo, mas, entenda, é importante a articulação das palavras. Mudam facilmente de significado se não estamos atentos. Uma vez, durante anos, com um grupo de amigos, inventámos uma tertúlia: uma vez por semana, num serão à noite, reuníamo-nos e desconstruíamos a rede lexical das palavras. Depois aproveitávamos umas tantas e imprimíamos panfletos (atividade que fazíamos numa antiga tipografia, que trabalhava ainda com um sistema de tipos móveis; cada palavra construída letra a letra, prensada e encaixada numa solidez atroz). Depois, ao outro dia, era o divertimento total: sabíamos os fiscais do regime enredados na descodificação de folhetos subversivos, criptograficamente cifrados, julgavam eles. Chegaram a mandar vir, do estrangeiro, um dito especialista em códigos. Esse terá ocupado o seu tempo, e ganho o seu dinheiro, a pensar o impensável acerca dos nossos textos, porque nós nada pensáramos. Tinhamo-nos limitado a refundir as palavras. Era muito novo, então… foi aí que aprendi a importância que elas têm. Devemos estar atentos às transgressões. Se quisermos transgredir, devemos fazê-lo com conhecimento, com sabedoria… a bela “sagesse” dos franceses.

Não soube que responder. Subitamente, na sala, ecoou o sinal horário das vinte horas, transmitido pela estação de rádio: agudo, digitalizado, desumanizante. E, numa frequência ainda mais elevada, o ruído estridente dum spot publicitário impôs uma interrupção à conversa. A voz suave, harmoniosa e divertida, gracilmente gaga do locutor anterior desaparecera. Em vez dela, tinha sido posta no ar uma transmissão em direto da inauguração de uma exposição artística de Pablo Milaneto. As entrevistas feitas aos críticos de arte presentes, que estavam a ser difundidas, transportavam para o interior da loja o ruído angustiante, e sem sentido, de uma multidão de vozes, que era como um roncar disforme, mergulhado em ondas e desfeito; sobreposto a ele, as opiniões individualizadas dos especialistas.

«- Espantosas… veja a recriação das figuras femininas!»

«- De facto… É espantoso.»

«- Brilhante, garanto-lhe. Os cabelos são em forma de tentáculos e escondem-lhe todo o rosto. Perdeu-se completamente a forma humana e os seres que a envolvem parecem ser projeções de si própria. Como clones. Gosto de usar esta palavra. Moderna, não? A pintura portuguesa está repleta de clones. Não concorda?»

«- Mas o Pablo não. É extraordinária a forma como nesta exposição regressa aos temas da mitologia clássica, da antiguidade grega e latina, sem perder a força e a energia próprias da sua pintura.»

«- Alterou ligeiramente as proporções e as cores…»

«- Oh, ligeiramente. Muito pouco. De resto era necessário. Deve reparar nos títulos dos quadros: ninfa, medusa, coralina…»

«- Alguns estranhamente têm formas alucinadas de flores.»

- Sifonóforos. – Afirmou o velho, elevando apenas um pouco o tom de voz, e que até ao momento permanecera silencioso. – São sifonóforos, pode crer: de resto, são parentes dos corais e das medusas e, quem sabe, se não serão das mulheres?

- Sim, talvez…

- Tome. – Disse-lhe o homem estendendo-lhe o Almanaque. – Leia. Compreenda. É um trabalho de uma vida. Ou melhor, é o trabalho da vida. Não quer experimentar? Receia? O quê? Ter toda a vida de subir e descer esta mesma rua íngreme? Sem mais nada? E o que é que há mais, para além do empedrado deste passeio e a montra desta loja? Sim, a montra… A verdade e as dúvidas simultaneamente contidas no mesmo espaço, na mesma matéria.  

Dito isto, afastou-se e saiu da loja. Através do vidro da montra, o rapaz acompanhou o trajeto do velho, que atravessava a rua, por entre o trânsito denso, quase parado, e desaparecia no cimo. Enquanto o observava em movimento, ficara com a impressão de que nunca mais o veria: sim, de facto, era como um registo de uma sensação segura e espantosamente real.

Não ficou mais tempo ali. Desde que o homem saíra que tudo parecera ficar ainda mais densamente incompreensível. Saiu, transportando consigo o Almanaque.

Num último olhar de relance para o aquário já não sabia que forma vislumbrava: uma alga, seria?, num mar calmo e tranquilo, quase inerte? Uma figura humana… uma alucinação de flor? Ou, tão simples, um universo contido numa sopa líquida, fétida e amarelada?


3.       “Caravella”
Da capa do Almanaque, traduzira do inglês o título “Mundos paradoxais”.

Afinal o paradoxo era uma dúvida, se calhar, até, um desconhecimento científico. As fisálias seriam um organismo ou uma colónia? Ridículo, pareceu-lhe. Interessou-o mais, na verdade, a ideia de superorganismo, indivíduos interligados. Perdida a individualidade, especializados numa única tarefa, afinal órgãos de uma entidade mais ampla. Mas, isso, sim, era realmente interessante, agindo como um todo.

A natureza comediante de si mesma, era algo divinamente curioso – quase dantesco. Sim, sobretudo se as fisálias desconhecessem esta dúvida. Se calhar era a dúvida do próprio universo. Tudo remetido apenas a uma questão de escala. Até mesmo as próprias dúvidas!

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- Boa tarde, permita que me apresente – desenvolvera de facto uma postura e um cumprimento mais cordiais do que o velho – chamo-me Pablo Milaneto.

- Boa tarde. – Responde ligeiramente admirado o outro indivíduo. – Ali fora, no aquário, aquilo… é uma alga gigante?

- Não, de modo algum. É uma fisália, um sifonóforo. Parente dos corais e das medusas.

- Desculpe, não percebo…

- É na verdade muito simples: forma uma solução de continuidade, como no interior de um corpo, sendo uma colónia. Paradoxalmente, contudo, essa é a aporia e a dúvida.





A Sombra (do infinito)



À minha frente, o televisor transporta a realidade, confirma a minha existência concreta, temporal, e anula os medos submersos. Estabilizo o olhar no espaço do écran e afiro a atualidade, que me faz sentir numa imensa cadeia global, onde as distâncias e os acontecimentos são transpuníveis por correntes elétricas e cabos invisíveis, mas que estão lá algures e ligam os continentes. Ah, sim! E os satélites… à deriva, como mortos, suspensos no espaço. Cadáveres abandonados, que ninguém mais quer e que atingiram pontos inacessíveis, que só voando se atingem. Por isso me interrogo: “- De entre nós, quem pode na realidade voar?”



Sentado no sofá, no canto oposto da sala, está um velho amigo. É um verdadeiro corsário do século XVII. Rosto oval, coberto por uma barba castanha escura, densa, e cabelos quase louros, compridos. É uma figura humana frágil, quase débil, e, contudo, vê-lo-íamos, sem dificuldade, empunhar uma espada (de corsário) e combater na amurada de um navio, num pátio de casas, numa esquina entre duas ruas. Encontramo-nos raramente. De vez em quando, aparece, entra, quase sempre antes de eu chegar, e ocupa o lugar, do costume, no sofá, ao fundo da sala, muito próximo da janela. Ali, parece ficar à espera: umas vezes, parado, olhar estático, sem se mexer; outras, modelando formas geométricas em pequenas folhas de papel. Às vezes fica horas sem dizer uma palavra e eu limito-me a acompanhar as imagens no televisor. Aí tudo parece real. Focam-se alguns momentos soltos e, como recortadas, as formas mexem-se, executam movimentos e falam; e voltam atrás, repetindo tudo, porque se quer.
Hoje, porém, não será assim. Eis que se levanta, e o seu corpo balança (como se estivesse a bordo de um navio, a navegar), fazendo agitar as franjas compridas, que se prendem, lateralmente, às botas castanhas de cano alto. Sorri, enquanto se aproxima.
- Tinha saudades de falar contigo.
Eu sorrio. E endireito-me no assento, libertando o espaço para ele se sentar. O corsário toma o lugar ao meu lado e senta-se. O tronco ligeiramente encurvado, os braços dobrados assentes sobre as pernas e as mãos unidas, mesmo por sobre os joelhos. O cabelo louro, solto e comprido, afunila-lhe o rosto e parece quase uma figura imberbe, como perdida. Fica assim debruçado a conversar comigo.
- Queria ver-te de novo, antes de regressar. Sabes, estou em dois tempos deferentes. Acreditas?
- Acredito. – Respondo com seriedade, como faço sempre, parecendo-me indiferente entender se é verdade ou não.
- Queria falar contigo… Sabes? Acho-te fascinante… Os teus lábios, o teu olhar, a tua facis…
Sem dúvida é o corsário quem fala – o corsário de barba negra – e que se dirige à sua dama do século XVII. Como o escutaria ela, interrogo-me. Em silêncio, sorrindo, tal como eu, no século XX? Ou, não ousaria sequer sorrir, não falaria tão pouco, escondida em timidez? Olhá-lo-ia com desdém? Difícil compreender a dama do século XVII… Talvez se limitasse a escarnecer dele. Eu não o farei. Mas algo me intimida e, como todas as outras vezes, há em mim o desejo de fugir. Atento, ele parece ter percebido.
- Não te vás embora. Gosto de falar contigo, sabes?
A dama não consegue resistir ao pedido… eu também não.
- Sabes, tenho em casa uma espada. A lâmina é de aço de Córdova. Comprei-a na última vez que fui a Espanha… e, sabes, foi engraçado, encontrei uma rapariga, que me disse que tinha estado comigo, dois dias antes, no país Basco… que eu era esse… - sorri com um olhar provocador e continua a falar - … talvez fosse mesmo eu, mas não me lembro de ter lá estado. Conheces o país Basco?
- Não. Mas acho os bascos espantosos… o mistério da língua… Acho mesmo que só me poderia apaixonar, de verdade, por um basco… nunca se sabe se não estaremos perante um revolucionário… um idealista, que defende com paixão e verdade as…
- Também tenho uma pistola. – Diz subitamente, e interrompendo-me. – É de carregar pelo cano… muito antiga e de punho trabalhado.
- Uma espada… uma pistola… Tudo isso para quê?
- E tenho também uma navalha de ponta e mola.
Quererá surpreender-me?
- Nunca usei nenhuma dessas armas, a sério, mesmo! Sabes… o que eu gosto mesmo é de jogar naquelas máquinas eletrónicas…
- Com jogos de guerra?
- Claro… olha, é precisa muita destreza e domínio e energia, claro. Qualquer distração ou erro podem ser fatais, entendes?
Todas as características de um corsário combatente. Imagino que é o que ele quer que eu pense.
- Já alguma vez jogaste nessas máquinas?
- Não. Gasta-se muito dinheiro. É uma palermice.
Endireita-se e aproxima-se mais de mim. Desde o início da conversa que não se movera da mesma posição. Tira um papel dobrado do bolso interior do colete largo de camurça.
- É um mapa mundi. Queres ver?
- Sim. Mostra.
- Encontrei este mapa aqui na sala. É teu?
- Não. Não faço a menor ideia de quem seja!
- Queres ver, está tudo errado…
Parece uma criança, ansiosa, o seu olhar ganha algum brilho e movimento. Todo ele se agita, para me explicar que as dimensões dos continentes e dos mares estão erradas. Poderia facilmente pegar num Atlas e mostrar-lhe a verdadeira dimensão do mundo, mas acho desnecessário… Ele, corsário, que parece saber de cor os contornos dos terrenos e dos países, contestaria decerto.
- Sabes o que é um conta-fios?
- Não faço a menor ideia… serve para contar fios… - arrisco na brincadeira e porque estou cansada de o ouvir a argumentar sobre as formas dos continentes e dos mares.
Com satisfação, explica que é um objeto indispensável para desenhar os mapas, que exigem um trabalho de construção meticuloso, milimétrico.
- Já viste desenhar um selo? Sabias que não são feitos à escala? São mesmo assim daquele tamanho. Há selos espantosos. Sabes que coleciono selos de todas as partes do mundo? Tenho alguns fantásticos dos Estados Unidos da América.
- O admirável mundo novo? – cito em jeito de troça.
Olha-me indiferente, não percebeu a citação nem o sentido. Já o conheço e sei que vai de imediato mudar de assunto… são águas ou terrenos que não domina, prudente, afasta-se.
Narra-me a sua última aventura, mas que pode afinal ter sido apenas a primeira e a única, aquela que ele sempre repete, quando quer manter a minha atenção. Fora atacado em Lisboa. Roubaram-lhe o casaco de cabedal (caro, que comprou com um cartão de crédito) e todos os documentos. Ficou sem identidade. Dessa aventura recorda fragmentos de cenas. Risos selvagens e palavrões… cavalos… ou motas… e uma poça de sangue.
- Quando vi a poça de sangue desatei a fugir… quase que caí pelas escadas abaixo… Sabes, a poça de sangue não sai da minha cabeça. Aqueles tipos eram maus. Tinham navalhas e estavam bêbados e drogados. Não sei quem é que morreu… mas eles apanharam um tipo qualquer… até podia ter sido eu… entendes?
Aceno com a cabeça afirmativamente, ao mesmo tempo que o olho com atenção. Esta abentura parece já ter-lhe acontecido vezes sem fim, e sempre que a recorda, estampa-se-lhe no olhar o medo aterrador que terá sentido nessa noite… impotência, fragilidade, submissão… como se em qualquer dos mundos, ele sempre tivesse sido perseguido. Ao meu lado, no entanto, parece calmo, talvez porque, como ele afirma, eu lhe faço lembrar a dama (a tal das faces esbeltas e do sorriso cândido).
- Sabes? É só no futuro que as pessoas se encontram.
- Bom… já é uma vantagem…
- Porquê?
- Há pessoas que, no presente, ninguém gostaria de ver…
Não dá qualquer importância ao que eu digo. Sabe que eu estou a brincar e fica desconcertado.
- No futuro podemos transformar a realidade. Estamos livres, soltos, podemos fazer o que quisermos… Percebes?
- Menos mexer no mecanismo do tempo… - arrisco, com um sorriso, que ele não entende.
- Bom, ele só existe para quem acredita.
- Eu acredito. Envelheço…
Olha-me surpreso e agora é ele que sorri trocista e sussurra…
- Ainda ontem… tinhas esse mesmo sorriso… e a tua face branca, sem rugas, lembrava o sopro do vento. Dei-te uma flor e olhaste-me docemente…
- Sim. Ontem.
- Bom, mas ontem, foi há muito tempo!



Perco propositadamente a noção do tempo que flui e começo a sentir um entorpecimento geral, um cansaço agradável, que, fatalmente, irá conduzir ao sono. A voz do corsário cada vez mais distante, penso. Domino inconscientemente a vontade física de dormir, concentrando-me no televisor, e imagino uma fuga de luz, de sons e de contrastes, capazes de descreverem um círculo (semicírculo fechado num punho). A luz foge e o écran fica impenetrável na distância das imagens. Acordo, talvez mais tarde, e sinto o corpo dormente. A luz do televisor dirige o meu olhar para o écran e vejo que constrói sozinho chuvas de pontos brancos e negros, que dançam num movimento elétrico, mecânico, descrevendo marés vivas, limitadas no espaço. A cor cinzenta, metálica e brilhante, capta toda a minha atenção e, aos poucos, desprende-me da realidade cromática que me cerca, como se em toda a sala não existissem senão movimentos tumultuosos de pontos cinzentos dispersos e mecanicamente ativos, acompanhados de um ruído eletrónico e hipnotizante que me povoa o cérebro. Nesse momento esqueço po completo o corsário, a dama e as aventuras. Estou presa, sei, no mecanismo do tempo… Sinto frio, perdida, de súbito, na sombra do infinito.